No episódio 2 desta iniciativa onde a poesia se mistura com a música, a dança e a performance, Teresa Coutinho diz poemas de David Mourão-Ferreira e de Raquel Nobre Guerra.
Noiserv interpreta dois temas de sua autoria, «Dezoito» e «Vinte e Três».
CULTO, um projeto com conceção artística da Musgo em parceria com o Município de Oeiras e integrado no Oeiras27.
Leia e releia os poemas ditos:
DO TEMPO AO CORAÇÃO
E volto a murmurar * Do cântico de amor
gerado na Suméria * às novas europutas
Do muito que me dás ao muito que não dou
mas que sempre conservo entre as coisas mais puras
De uma genebra a mais num bar de Amesterdão
a não perder o pé numa praia da Grécia
De tantas * tantas mãos * que nos passam pelas mãos
a tão poucas que são as que nunca se esquecem
De ter visto o começo e o fim da Via Ápia
De ter atravessado o muro de Berlim
De outros muros que não aparecem no mapa
De outros muros que só aparecem aqui
ao barro deste céu que te modela os ombros
ao sopro deste céu que te solta o cabelo
ao riso deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe que nós não precisamos dele
Da pertinaz presença * E da longevidade
do corvo * do chacal * do louco * do eunuco
ao rouxinol que morre em plena madrugada
à rosa que adormece em caules de um minuto
Do que foi noutro tempo a saúde no campo
à lepra que nos rói a paisagem bucólica
Do tempo * ao coração minado pelo cancro
Dos rins * ao infinito incubado na cólera
Do tempo ao coração * mas com pausa na pele
como Roma by night entre dois aviões
como passar o Verão numa vogal aberta
como dizer que não * que já não somos dois
Dos rins ao infinito * A este * que não outro
Ao que rola dos rins * Ao que vai rebentar-te
na câmara blindada e nocturna do útero
E nos transfere o fim para um pouco mais tarde
Da curva de entretanto * à entrada do poço
De soletrar em mim * a ler * nas tuas mãos
como é rápido * e lento * e recto * e sinuoso
o percurso que vai do tempo ao coração.
(David Mourão-Ferreira)
E volto a murmurar * Do cântico de amor
gerado na Suméria * às novas europutas
Do muito que me dás ao muito que não dou
mas que sempre conservo entre as coisas mais puras
De uma genebra a mais num bar de Amesterdão
a não perder o pé numa praia da Grécia
De tantas * tantas mãos * que nos passam pelas mãos
a tão poucas que são as que nunca se esquecem
De ter visto o começo e o fim da Via Ápia
De ter atravessado o muro de Berlim
De outros muros que não aparecem no mapa
De outros muros que só aparecem aqui
ao barro deste céu que te modela os ombros
ao sopro deste céu que te solta o cabelo
ao riso deste céu que vem ao nosso encontro
quando sabe que nós não precisamos dele
Da pertinaz presença * E da longevidade
do corvo * do chacal * do louco * do eunuco
ao rouxinol que morre em plena madrugada
à rosa que adormece em caules de um minuto
Do que foi noutro tempo a saúde no campo
à lepra que nos rói a paisagem bucólica
Do tempo * ao coração minado pelo cancro
Dos rins * ao infinito incubado na cólera
Do tempo ao coração * mas com pausa na pele
como Roma by night entre dois aviões
como passar o Verão numa vogal aberta
como dizer que não * que já não somos dois
Dos rins ao infinito * A este * que não outro
Ao que rola dos rins * Ao que vai rebentar-te
na câmara blindada e nocturna do útero
E nos transfere o fim para um pouco mais tarde
Da curva de entretanto * à entrada do poço
De soletrar em mim * a ler * nas tuas mãos
como é rápido * e lento * e recto * e sinuoso
o percurso que vai do tempo ao coração.
(David Mourão-Ferreira)
*
(in «Do Tempo ao Coração», 1966)
SAUDAÇÃO A ÁLVARO DE CAMPOS, de Raquel Nobre Guerra
(parte do longo poema Aqui)
VINTE E TRÊS, de Noiserv
Abrir a janela
Vozes a gritar
Quero acordar alguém
Ter a memória a correr atrás de mim
O mundo ainda não parou
Olhar para trás sem medo de morrer
Não perder o que quero lembrar
Deixar cair para onde vais coisas simples e reais
Vozes a gritar
Quero acordar alguém
Ter a memória a correr atrás de mim
O mundo ainda não parou
Olhar para trás sem medo de morrer
Não perder o que quero lembrar
Deixar cair para onde vais coisas simples e reais
DEZOITO, de Noiserv
Porque não rir de pé no fim?
E ver já sem pé, só assim
Só por querer um pouco
Mais vozes a cantar por mim
Só por ter um pouco mais
Medo de chegar ao fim
Porque não ver de pé o fim?
Perder já em pé, só assim
P’ra morrer um pouco mais
Lento a contar do fim
Só p'ra ter um pouco mais
Tempo sem olhar para mim
E ver já sem pé, só assim
Só por querer um pouco
Mais vozes a cantar por mim
Só por ter um pouco mais
Medo de chegar ao fim
Porque não ver de pé o fim?
Perder já em pé, só assim
P’ra morrer um pouco mais
Lento a contar do fim
Só p'ra ter um pouco mais
Tempo sem olhar para mim
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